sábado, 29 de março de 2014

Quando a grande tribulação chegar à terra, terá enfim seu merecido descanso

Por Leonardo Boff

Achamos muito oportunas as reflexões do autor - Waldemar Boff, formado em filosofia e sociologia nos Estados Unidos, e que anima o SEOP(Serviço de Educação e Organização Popular) na Baixada Fluminense - que desenvolve atividades ecológicas voltadas para pequenos produtores rurais junto ao rio Surui, na Baixada Fluminense. Eis seu texto:

"Ninguém sabe ao certo o dia e hora. É que já estamos no meio dela, sem notarmos. Mas que está vindo, está, cada vez com mais intensidade e nitidez. Quando acontecer a grande virada, tudo vai parecer como se fosse de surpresa.

Embora haja dados seguros que apontam a inevitabilidade das mudanças globais devidas ao clima, com conseqüências que os cientistas tentam adivinhar, mas que seguramente serão para o pior, os interesses econômicos das grandes nações e a falta de visão a longo termo de seus líderes, não lhes permitem tomar as medidas necessárias para mitigar os efeitos e adaptar seu modo de vida ao estado febril da Terra.

Poderíamos imaginar um cenário plausível em que furacões varrerão regiões inteiras. Ondas gigantescas engolirão cidades e civilizações, indo morrer aos pés das montanhas. Secas prolongadas farão com que se troquem todas as riquezas por um simples copo de água suja. O calor e o frio extremos farão lembrar com saudades das histórias das avós que falavam das brisas da tarde e do aconchego de uma lareira no inverno, sempre previsível, e dos frutos amadurecidos ao calor de um sol de verão benfazejo. Comer-se-á só para sobreviver, sempre pouco e de gosto duvidoso. 

Mas tudo isto ainda não será o pior. A mãe, de tão fraca, não conseguirá enterrar a filha e o neto matará o avô por causa de uma côdea de pão. O cão e o gato, amigos do homem, serão buscados por toda a parte como última possibilidade de matar a fome. Os vivos invejarão os mortos e não haverá quem chore a morte de crianças. A fome chegará a tal ponto que, como na Jerusalém sitiada, os famintos aguardarão a próxima vítima da morte para disputar-lhe a carne esfiapada.

“O país ficará devastado e as cidades se tornarão escombros. Todo o tempo em que ficar devastada, a Terra descansará pelos sábados que não descansou quando nela habitáveis” (Lev. 26,33-35). 

Mas será o fim de toda a biosfera? Não. Por causa dos justos e sensatos, Deus abreviará esses dias e não dizimará toda a vida sobre a Terra, mantendo a promessa que fizera a nosso pai Noé. Mas é necessário que o ser humano passe por essa tribulação para acordar do seu egocentrismo e reconhecer em definitivo que ele é parte da comunidade da vida e o principal guardador dela.

Que fazer para nos prepararmos para esses tempos? Primeiramente, reconhecer que já vivemos neles. Hoje já não sabemos quando virá a primavera ou outono. Já não contamos com os meses de frio e calor. Já não sabemos reconhecer quando fará chuva ou sol.

Depois, importa ficar quieto, vigiando e observando os sinais que indicam a aceleração dos processos de mudança. E sobretudo, é imprescindível converter-se, mudar de hábitos de vida, uma mudança profunda, pessoal e definitiva. Só então estaríamos em condições morais de pedir aos outros que façam o mesmo.

Mas como no tempo dos profetas, poucos ouvirão, alguns escarnecerão e a maioria se manterá indiferente e se permitindo toda sorte de liberdades como no tempo de Noé.

Deveríamos ainda voltar às raízes, recomeçar, como tantas vezes já fez a humanidade arrependida, reconhecendo que somos apenas criaturas e não Criador, que somos companheiros e não senhores da natureza; que para nossa felicidade é indispensável nos submeter às grandes leis da vida e ouvir com atenção a voz de nossa consciência. Se obedecermos a essas leis maiores, colheremos os frutos da Terra e a alegria da alma. Se desobedecermos a elas, herdaremos uma civilização como essa na qual estamos vivendo, cheia de avidez, guerras e tristezas.

Para esses tempos de carestia que virão, é fundamental  recuperar as ancestrais artes e técnicas do plantar, colher, comer; do cuidar dos animais e servir-se deles com respeito; do fazer utensílios e ferramentas, com arte e tecnologia local; do selecionar e plantar as ervas que curam e os grãos que nutrem; do recolher para tecer; do preservar as fontes d´água, do encontrar lugares apropriados para cavarmos os poços e do aprender a guardar as águas da chuva. É entrar na faculdade da economia da escassez, da sobriedade compartida e da beleza despojada. Desse saber recuperado e enriquecido surgiria uma civilização do contentamento, uma biocivilização, a Terra da boa esperança.

Depois dessa longa temporada de lágrimas e esperanças, superaremos essa estúpida guerra de religiões, essa intolerável disputa de deuses. Para além dos profetas e tradições, para além das morais e liturgias, quem sabe voltemos a adorar, sob múltiplos nomes e formas, o único Criador de todas as coisas e Pai-Mãe de todos os viventes, no grande Espírito que a tudo une e inspira, entrelaçados amorosamente na única fraternidade universal. E poderemos enfim organizar verdadeiramente a união de todos os povos do mundo e um autêntico parlamento de todas as religiões.


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