segunda-feira, 14 de abril de 2014

A paz perene com a natureza e a Mãe Terra

Por Leonardo Boff

Um dos legados mais fecundos de Francisco de Assis, atualizado por Francisco de Roma, é a pregação da paz, tão urgente nos dias atuais. A primeira saudação que São Francisco  dirigia aos que encontrava era  desejar “Paz e Bem”, o que corresponde ao Shalom bíblico. A paz que ansiava não se restringia às relações interpessoais e sociais. Buscava uma paz perene com todos os elementos da natureza, tratando-os com o doce nome de irmãos e irmãs.

Especialmente a “irmã e Mãe Terra”, como a chamava, deveria ser abraçada pelo amplexo da paz. Seu primeiro biógrafo, Tomás de Celano, resume maravilhosamente o sentimento fraterno do mundo que o invadia ao testemunhar: “Enchia-se de inefável gozo todas as vezes que olhava o sol, contemplava a lua e dirigia sua vista para as estrelas e o firmamento. Quando se encontrava com as flores, pregava-lhes como se fossem dotadas de inteligência e as convidava a louvar a Deus. Fazia-o com terníssima e comovedora candura: exortava à gratidão os trigais e os vinhedos, as pedras e as selvas, a plantura dos campos e as correntes dos rios, a beleza das hortas, a terra, o fogo, o ar e o vento”.

Esta atitude de reverência e de enternecimento levava-o  a recolher as minhocas dos caminhos para não serem pisadas. No inverno dava mel às abelhas para que não morressem de escassez e de frio. Pedia aos irmãos que não cortassem as árvores pela raiz, na esperança de que pudessem se regenerar. Até as ervas daninhas deveriam ter um lugar reservado nas hortas para que pudessem sobreviver, pois “elas também anunciam o formosíssimo Pai de todos os seres”.

Só pode viver esta intimidade com todos os seres quem escutou sua ressonância simbólica dentro da alma, unindo a ecologia ambiental com a ecologia profunda; jamais se colocou acima das coisas mas ao pé delas, verdadeiramente como quem convive como irmão e irmã, descobrindo os laços de parentesco que une a todos. 

O universo franciscano e ecológico nunca é inerte, nem as coisas estão jogadas aí, ao alcance da mão possessora do ser humano ou justapostas uma ao lado da outra, sem interconexões entre elas. Tudo compõe uma grandiosa sinfonia, cujo maestro é o próprio Criador. Todas são animadas e personalizadas; por intuição descobriu o que sabemos atualmente por via científica (Crick e Dawson, os que decifraram o DNA) de que todos os viventes somos parentes, primos, irmãos e irmãs, por possuirmos o mesmo código genético de base. Francisco experimentou  espiritualmente esta consanguinidade. 


Desta atitude nasceu uma imperturbável paz, sem medo e sem ameaças, paz de quem se sente sempre em casa com os pais, os irmãos e as irmãs. São Francisco realizou plenamente a esplêndida definição que a Carta da Terra encontrou para a paz: “É aquela plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com as outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e com o Todo maior do qual somos parte”(n.16 f).

A suprema expressão da paz, feita de convivência fraterna e de acolhida calorosa de todas as pessoas e coisas, é simbolizada pelo conhecido relato da perfeita alegria. Através de um artifício da imaginação, Francisco apresenta todo tipo de injúria e violência contra dois confrades (um deles é ele próprio, Francisco). Encharcados de chuva e de lama, chegam, exaustos, ao convento. Aí são rechaçados a bastonadas (“batidos com um pau de nó em nó”) pelo frade porteiro. Embora tenham sido reconhecidos como confrades, são vilipendiados moralmente e rejeitados como gente de má fama.

No relato da perfeita alegria, que encontra paralelos na tradição budista, Francisco vai, passo a passo, desmontando os mecanismos que geram a cultura da violência. A verdadeira alegria não está na autoestima nem na necessidade de reconhecimento, nem em fazer milagres e falar em línguas. Em seu lugar, coloca os fundamentos da cultura da paz: o amor, a capacidade de suportar as contradições, o perdão e a reconciliação para além de qualquer pressuposição ou exigência prévia. Vivida esta atitude, irrompe a paz que é uma paz interior inalterável, capaz de conviver jovialmente com as mais duras oposições, paz como fruto de um completo despojamento. Não são essas as primícias de um Reino de justiça, de paz e de amor que tanto desejamos?

Esta visão da paz de São Francisco representa um outro modo de ser-no-mundo, uma alternativa ao modo de ser da modernidade e da pós-modernidade, assentado sobre a posse e o uso desrespeitoso das coisas para o desfrute humano sem qualquer outra consideração. 

Embora tenha vivido há mais de oitocentos anos, novo é ele e não nós. Nós somos velhos e envelhecidos que, com a nossa voracidade, estamos destruindo as bases que sustentam a vida em nosso planeta e pondo em risco o nosso futuro como espécie. A descoberta da irmandade cósmica nos ajudará a sair da crise e nos devolverá a inocência perdida, que é a claridade infantil  da idade adulta.


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